sábado, 17 de setembro de 2011

João Torto,o homem voador

Na esmagadora maioria são homens os autores das crónicas que nos relatam acontecimentos passados ao longo da nossa história.
Houve, porém, também algumas (poucas) mulheres que nos dão testemunho de factos que presenciaram, de que tiveram conhecimento ou que simplesmente inventaram.
Uma delas foi a filha bastarda de um fidalgo da casa de S. Miguel de Fornos de nome D. Maria Glória, que assinou as suas crónicas com o pseudónimo de Ana Gomes.
Desta cronista visiense  há o relato da incrível aventura de um Ícaro de nome João Torto que em 1540 com a ajuda de duas asas articuladas ligadas aos seus braços, voou desde a Torre da Sé, da Catedral de Viseu, até à Capela de São Luís que se situava nas proximidades da ribeira ( Rio Pavia).
O padre Henrique Cid, falecido em 1910, autor de uma colectânea com o título de "Efemérides", descobriu nos Arquivos Municipais de Viseu esta interessantíssima história da referida cronista que passo de imediato a transcrever: "Em Junho de 1540, João de Almeida Torto, enfermeiro do hospital, e mestre das primeiras letras, mandou deitar pela cidade o seguinte pregão:
Saibam todos os senhores habitantes desta cidade, que não terminará este mês sem se ver a maior das maravilhas, a qual vem a ser um homem desta cidade voar, com asas feitiças, da Torre da Sé ao Campo de São Mateus , pelo que responde por sua pessoa e bens- João de Almeida Torto."
Esta notícia alvoroçou a cidade toda e cada qual dos seus habitantes esperava com ansiedade a ocasião de ver tão estupenda maravilha. A pedido da mulher, impôs-lhe (ao Torto) o Juiz do Povo a obrigação de fazer testamento em benefício dela, pois, como filhos não havia, era para os irmãos se tal não fizesse. A pobre mulherzinha tanto lastimava aquela doidice do marido que muita gente comoveu, mas todos tinham no pobre louco confiança no bom êxito da empresa.
Segundo pregão anunciou o dia 20 de Junho pelas 5 horas da manhã.
Na véspera, algumas pessoas acompanhadas do Juiz do Povo, dirigiram-se a casa do inventor e pediram-lhe se lhes mostrava o seu maravilhoso invento. O bom homem não só mostrou o invento, mas deu categóricas explicações do modo de obrar e do fim que tinha cada uma das peças.
As asas, eram de pano forte e duplas, isto é, eram duas de cada lado, sendo mais pequenas as inferiores e semelhantes a uma asa de ave. Estas duas asas estavam ligadas por três argolas de ferro, enchumaçadas em trapos e era por elas que o Almeida devia meter os braços. Além disso estavam ligadas, por a parte superior, por duas dobradiças de ferro e pela parte inferior por um cinto de cabedal. Os sapatos eram de solas tríplices, havendo entre elas espaços para atenuar a queda. Tinha também um barrete do feitio de uma cabeça de pássaro, com um bico enorme e aberto.
O inventor levou a sua complacência a vestir o aparelho e a elevar-se alguns pés acima do solo e a dar uma volta pelo quintal.
No dia seguinte, ainda a aurora não tinha despontado e já o Campo de São Mateus estava coberto de espectadores que vinham dos povos e quintas circunvizinhas e o Adro cheio de gente da cidade.
Às quatro horas era enorme a multidão de povo. O novo Ícaro subiu à Torre da Sé e para lá guindou por uma corda o seu aparelho, sendo neste serviço coadjuvado por algumas pessoas. A mulher estava à porta da Capela de Nossa Senhora dos Remédios, contemplando tristemente as manobras. O homem, às cinco horas, precisamente, já preparado, saltou da Torre e fazendo manobrar as asas descreveu demoradamente uma linha inclinada, tomando por mira a capela de São Mateus.
Foi bem até certo ponto, mas uma das asas deixou de trabalhar e o barrete caindo-lhe para os olhos o fez descrever uma linha em arco e sempre descendente até que ficou em pé sobre o telhado da capela de São Luís, mas logo caiu ficando sobre as asas. Dali o tiraram sem sentimento. Desembaraçando-o do aparelho viu-se que tinha o braço esquerdo deslocado no ombro e em volta da cintura a impressão do cinto. Um dos sapatos desapareceu na trajectória. Uma das dobradiças tinha emperrado de tal forma que nem a martelo se pode dobrar. O homem voltou a si, duas horas depois, sem o menor juízo e tolo morreu dias depois."