O Império Colonial Português abrangia em 1960 uma superfície total de 2.031.935 Km2 correspondendo à soma das superfícies dos seguintes países europeus:
Portugal Continental, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suíça, Alemanha e Inglaterra. Em área Portugal ocupava em 1960 o quarto lugar do mundo entre os impérios coloniais nessa altura. Os territórios que estavam sobre o domínio de Portugal eram, além do rectângulo europeu e das ilhas adjacentes da Madeira e dos Açores, o arquipélago de Cabo Verde, a Guiné, São Tomé e Príncipe, São João Baptista de Ajudá, Angola, Moçambique, Estado da Índia (composto por Gôa, Damão e Diu), Macau (na China) e Timor (na Indonésia).
A partir porém de 1960 este vasto Império começa a desmoronar-se, devido a movimentos armados dos respectivos povos.
A primeira perda foi a de São João Baptista de Ajudá, uma presença simbólica portuguesa na costa do Daomé, uma vez que era praticamente constituída por uma fortaleza e um pequeno território a envolvê-la.
A dezassete de Dezembro de 1961 a União Indiana ocupa militarmente o Estado Português da Índia e anexa Gôa, Damão e Diu ao seu território. Nesse mesmo ano, em Angola é iniciada uma guerra de guerrilhas contra a nossa permanência naquela área de África, guerra que se estende rapidamente em 1962 à Guiné e em 1963 a Moçambique.
Essa guerra, em três frentes, tornar-se-á longa obrigando a um grande esforço material e humano, com sacrifício de várias gerações de jovens soldados, enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos).
No caso da minha família (Valente Magro) todos os meus cinco irmãos e eu próprio fomos chamados a prestar serviço militar obrigatório e todos fomos mobilizados: um para Moçambique, como alferes miliciano, dois para Angola sendo um deles no posto de furriel e o outro como cabo especialista da Força Aérea e três para a Guiné, sendo eu, o mais velho, como capitão miliciano, o mais novo como furriel e o imediatamente a seguir ao mais novo como primeiro cabo auxiliar de enfermeiro.
No meu caso particular fui duas vezes incorporado obrigatoriamente na vida militar. Em 1958 iniciei o cumprimento da minha primeira obrigação militar na escola prática de artilharia em Vendas Novas como cadete tendo acabado como aspirante oficial miliciano no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3, em Paramos, Espinho. Somente regressei à vida civil em Fevereiro de 1960 como alferes miliciano, tendo sido promovido mais tarde a tenente miliciano na disponibilidade.
Estive nas fileiras do exército nessa primeira fase durante vinte meses.
Depois disso entrei ao serviço do Ministério das Obras Públicas como engenheiro técnico, casei e nasceu o meu filho Fernando Manuel em 1961, precisamente no ano da invasão e anexação pelas tropas da União Indiana das possessões de Gôa, Damâo e Diu.
Também em 1961 teve início a guerra colonial de Angola, que se estendeu rapidamente à Guiné e a Moçambique como já referi anteriormente.
Na altura, em 1961, ainda receei ser mobilizado como alferes, mas tal não se verificou. Mas em 1968, passados sete anos, tive conhecimento que, por haver muita falta de comandantes e companhia (capitães) o governo estava incorporando os tenentes milicianos na disponibilidade a fim de frequentarem obrigatoriamente um curso de promoção a capitães, tendo em vista a sua mobilização, nesse posto, para as guerras coloniais em África.
O aviso para me apresentar em Mafra a fim de frequentar o referido curso de promoção a capitão chegou-me a vinte e oito de Fevereiro de 1969. Em Março desse mesmo ano fui pela segunda vez incorporado no exército e só passei à disponibilidade em trinta de Junho de 1972, isto é, passados quarenta messes. Como na minha primeira incorporação tinha estado vinte meses ao serviço do exército, com esta segunda incorporação perfiz sessenta meses, isto é cinco anos de vida militar obrigatória.
Vida militar que na segunda fase compreendeu uma comissão na Guiné de dez de Abril de 1970 a 30 de Junho de 1972. Essa comissão que inicialmente estava para a ser cumprida comandando uma companhia operacional no mato, acabou por ser levada a efeito no Batalhão de Engenharia 447, em Bissau por intervenção do Governador e Comandante Chefe da Guiné, General Spínola, que decidiu colocar-me no referido batalhão de engenharia aproveitando a minha formação civil.
Aí chefiei os Serviços de Reordenamentos Populacionais.
Tratava-se de um serviço dirigido por militares que era essencialmente destinado às populações civis. Tinha em vista proceder ao agrupamento de diversas pequenas "tabancas" com o fim de constituir aldeamentos médios onde fosse rentável dotá-los com algumas infraestruturas tais como escolas, postos sanitários, fontanários, tanques de lavar, cercados para o gado, mesquitas ou capelas.
Além disso tinha-se também em vista, com a execução dos reordenamentos, a defesa e o controle das populações.
A minha actividade não estava por isso circunscrita à cidade de Bissau. Tinha por vezes que me deslocar ao interior do território para resolver localmente problemas que surgiam durante as obras dos reordenamentos populacionais. Fiz, por isso, algumas viagens para o interior da Guiné em helicóptero ou em avião militar (Dornier). Essas viagens tinham alguns riscos devido aos independentistas, a certa altura, se terem apetrechado com mísseis terra-ar e devido aos tornados que por vezes se formavam e que eram perigosos principalmente para as pequenas aeronaves.
Durante a minha estadia na Guiné ocorreu um acidente justamente com um helicóptero que transportava cinco deputados da Assembleia Nacional e que um tornado fez despenhar no rio Mansoa tendo morrido todos os seus ocupantes.
Comigo as deslocações ao interior da Guiné correram sempre sem perigo, mas para outros militares não foi sempre assim.
O Batalhão de Engenharia 447 tinha como funções dar apoio às tropas aquarteladas na Guiné no âmbito de garantir o regular funcionamento dos quartéis, promover o fornecimento de geradores eléctricos, orientar e apoiar as obras de reordenamentos populacionais, fornecer material de manutenção, construir estradas, pontes e portos de atracagem, quartéis e abrigos subterrâneos, etc.
Muitos elementos do BENG 447 tinham de se deslocar ao mato frequentemente em colunas por via terrestre e alguns correram grandes riscos como podemos constatar pelo relato trágico que o Furriel Miliciano de Engenharia Pedro Manuel Santos fez no livro "A Engenharia Militar na Guiné" (no qual também colaborei) quando descreve uma emboscada que sofreu uma coluna de dez viaturas, em que ele mesmo seguia, da seguinte forma:
"No dia 22 de Março de 1974 quando regressava de Piche para Nova Lamego, em coluna militar, e após termos percorrido cerca de dez quilómetros entre Benten e Cambajá, cerca das 8:30 horas, sofremos uma emboscada de grande violência.
O PAIGC (Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde) tinha colocado à beira da estrada cerca de 110 abrigos e outra grande quantidade de guerrilheiros em cima de mangueiros. O número de guerrilheiros estimou-se entre duzentos e duzentos e cinquenta elementos...
A nossa coluna militar era constituída por dez viaturas, sendo duas chaimites, uma white, três berliets e quatro unimogs.
Quando deflagrou a emboscada as duas chaimites da frente foram as primeiras a ser atacadas com RPGês bem como uma white e um unimog.
A primeira chaimite onde ia o capitão Luz Afonso passou e saiu da estrada protegendo-se no mato no lado oposto ao dos guerrilheiros tendo sido ainda atingida por um rocket de raspão.
A segunda chaimite, onde ia eu, apanhou uma rocketada à frente, bem como no lugar onde ia o condutor e o Furriel Soares que a comandava. Perfurou o blindado e cortou as pernas aos dois referidos camaradas que começaram a gritar por ajuda.
O cabo Augusto Graça que ia na metralhadora, com uma enorme frieza dispara durante algum tempo até que a velha máquina se encravou. Durante uns minutos, que me pareceram anos, a chaimite começou a arder pela frente e as chamas envolveram os companheiros que tinham sido atingidos pela rocketada e que já estavam sem pernas.
Lembro-me de olhar nos olhos o Furriel Soares, que comandava a chaimite, e que me pediu para o não deixar morrer ali.
Por segundos tentei pegar num deles mas a viatura já se encontrava com um nível de calor muito elevado e o perigo de ficarmos todos lá dentro era eminente.
O cabo atirador Augusto Graça apenas teve tempo de abrir metade da escotilha do blindado e gritar para fugirmos. Já não pude fazer mais nada. Tive de abandonar o blindado.
Saí eu, o capitão miliciano Fernando e o cabo Augusto Graça. Corri cerca de cem metros e logo atrás de mim um guerrilheiro do PAIGC tentou agarrar-me à mão. De imediato os depósitos da chaimite rebentaram e deu-se uma enorme explosão.
Ainda me lembro de ouvir as balas e as granadas que estavam dentro do blindado a rebentar e os últimos gritos dos meus dois camaradas!
Nesse momento o guerrilheiro que correu atrás de mim, em volta de um enorme morro de formigas "baga baga", desistiu, presumo que assustado pela enorme explosão da chaimite e consegui despistá-lo fugindo para o mato. A minha G3 tinha ficado no blindado.
Dentro do mato encontrei o capitão Fernando... ele trazia uma pistola Walter e disse-me: esta pistola é para nos suicidar-mos se formos agarrados à mão!
A partir de aí perdi por completo a memória, não sei por onde andei nem durante quanto tempo, mas dizem-me que foi por um dia inteiro. Tenho uma vaga ideia de ir ter sozinho à estrada e encontrar o Furriel Fidalgo que fazia segurança ao material queimado. Senti o cheiro de carne humana queimada que saia da minha chaimite e que até hoje nunca mais me saiu do nariz.
Levaram-me para Piche onde o nosso capitão Luz Afonso já se encontrava à espera de transporte para Bissau. Segui, depois, para Nova Lamego onde fui tratado a uma perna que ficou ferida ao sair por metade da escotilha da chaimite. Fui depois evacuado para o Hospital Militar de Bissau...
A minha arma foi entregue mais tarde no BENG 447 apenas com a parte de ferro crivada das balas que rebentaram dentro da chaimite.
O Furriel Fidalgo disse-me que quando apareci do mato e o encontrei junto à estrada só gritava para ele: "Foge que vem aí os amarelos!" (referindo-me aos fardamentos do guerrilheiros do PAIGC ) e que estava completamente baralhado da cabeça. Chamaram-me o "morto-vivo" por ter sido dado como morto e depois aparecer com vida.
Nesta emboscada tivemos seis mortos, dezasseis feridos muito graves e três feridos ligeiros. Tenho na memória alguns camaradas a respirar pelas costas e já sem vida. Alguns completamente desfeitos. Outros a serem tratados com garrotes.
Quando regressei à metrópole para junto da minha família... senti-me completamente abandonado e entregue a mim próprio. Ninguém me perguntou se estava bem ou mal, se precisava ou não de qualquer tipo de ajuda. Tinha de recomeçar a minha vida ...
Hoje, passados quarenta anos, acho imprescindível este desabafo para que alguém com poderes para isso não deixe que a história se repita neste capítulo.
Esta é apenas uma história entre outras que em dois anos sucederam e que não gosto de contar mas entendo que a devia escrever. A todos os ex-combatentes ainda vivos deixo uma palavra de coragem para acabarmos os dias que nos falta viver.
As gerações vindouras que não esqueçam a brutalidade a que o Governo de então submeteu os jovens da nossa geração. Quando se fala de ex-combatentes deve tributar-se o respeito que eles merecem pois marcaram e fazem parte de uma página da história que, em nome da Pátria, foram obrigados a cumprir e muitos a darem, inclusivé, a sua própria vida."